Vou escrever sempre. A cada vez que apresentar, durante os processos de criação, enfim, sempre. Tenho notado como escrever é uma extensão do criar e do vivenciar. É quando eu consigo mastigar e absorver tudo o que aconteceu, o que foi produzido e, ao mesmo tempo, ter novos insigts e direcionamentos.
Muitas ideias tem estado na minha cabeça durante o processo de re-criação para esta apresentação. Digo, recriação porque "Retratos" já havia sido criada uma vez e apresentada ano passado. Mas, agora, houve uma série de mudanças de idéias e objetivos e, com isso, um novo processo de criação. Ele durou de fevereiro ao fim de março. Apesar de eu ter sido contemplada com o Cena Aberta em setembro, por um motivo ou outro, adiei essa retomada.
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Galeras esperando |
E, como eu venho falando pra todo mundo que me dá trela, 2012 é um ano novo, no qual eu estou abandonando a ansiedade pouco a pouco e na medida em que consigo fazê-lo. Então, a criação veio quando foi possível que ela viesse. Claro, com o compromisso de apresentar na data X em mente.
Vou me ater um pouco neste texto a como foi performar no dia 25 de março, na Casa da Ribeira e, mais tarde, em outras postagens, desenvolver com palavras os conceitos, os insigts, tudo isso. E fazer também uma comparação entre as duas apresentações de Retratos, a primeira em 2011, no Circuito Bode Arte e junto a outras performances, que se incluiam no projeto "O que está aqui está em todo lugar, o que não está aqui está em lugar nenhum" e a segunda na Casa da Ribeira, em um palco italiano. Nessa última, o público ficou disposto em cima do palco, com as cortinas fechadas.
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Lááá em cima da escada |
A performance passou de três a quatro quadros na segunda apresentação. Chamo de quadros as ações que considero diferentes umas das outras com uma "quebra" entre elas. Da primeira apresentação, só mantive o primeiro, no qual recebo uma pessoa do público por vez, cada um portando uma foto minha de infância recebida na entrada. Quando apresentei ano passado, no Bode Arte, foi o momento que mais gostei. Era um encontro meio emocionado, com todo mundo realmente muito próximo de mim. O próprio ambiente era diferente. Se quando performei em 2011, o encontro se dava num cubículo coberto com pano branco e decorado com meus brinquedos, desta vez, ele aconteceu na escada do palco da Casa da Ribeira, atrás da rotunda. A pessoa subia até lá para me ver. A própria atitude de esperar, junto com a instalação das TVs já tornou a relação diferente. E ainda o ato de ir para um local escondido gerava uma curiosidade que não tinha sido criada na primeira apresentação. Teve gente que achou essa esperada demorada demais... Esse é um problema a solucionar para as próximas apresentações.
O clima desta vez foi outro. O público era formado mais por pessoas desconhecidas e, ao mesmo tempo, a cada vez que eu refazia as perguntas "Ainda é a mesma criança?", "Ainda é a mesma menina?" a partir das fotos que eles traziam, ia percebendo o quão essa questão não tem resposta. Juntar uns pedaços, comparar meu corpo ao corpo da foto, tudo isso faz sentido, mas a minha história é impossível de reconstruir. Eu procuro voltar ao mesmo olhar, à mesma posição das mãos. Existe um delicadeza que eu percebo e não sei por onde se perdeu. É como se eu tivesse vivido aquilo e não sabia.
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Comecinho da ação... |
Digamos que eu tinha uma memória específica da minha infância e no processo para construção da performance, pude perceber que haviam outras coisas, outras memórias, ou algo que eu inventei, o que eu acho que foi. Uma história que se desdobra da própria história. Uma memória que é e não é real. E coisas que eu juntei pra formar o que penso e sinto hoje sobre o meu passado. Creio que esse caminho tenha sido mesmo de recolher sentimentos que eu não sei decodificar ainda. É algo entre se reconstruir e se (re)conhecer. Há tantos caminhos em mim mesma que eu não sei e meu trabalho tem estado em olhar melhor pra tudo isso. A ausência ou a baixa consciência de si continua me chamando atenção, nas crianças, nos animais...
O segundo quadro foi o do toque, ao som do Hallelujah na voz do Jeff Buckley. Vou confessar que a escolha dessa música não tem exatamente a ver com a ação ou com a performance. Eu queria uma música/som junto à movimentação e essa, especificamente, me emociona muito. Nesse quadro, eu vou passando a mão em mim mesma, me tocando. É como um segundo momento de reconhecimento. Eu acho bonito pra caramba e a música realmente dá o embalo que eu preciso pra fazer a ação. Foi o momento que mais rendeu imagens bonitas.
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Fim da ação |
Mas, o que aconteceu na apresentação foi que, no hora de começar, nada deu certo. Música não saiu, som não funcionou e eu lá parada, com o público olhando, esperando as coisas acontecerem. Comecei a ação sem música e quando ela finalmente começou a tocar, acho que eu desabei. Foi fazendo, me tocando e chorando. Uma mistura de tensão com o próprio ato. Yuri disse que esse foi meu batismo na performance, porque as coisas deram errado e, por isso, deram mais certo ainda. Eu apresentei muito pouco e acho que por isso continuo me surpreendendo com esses momentos. Fico pensando que eu tenho tão poucas chances (quase nenhuma) de ser tão sincera com o que eu estou sentido e menos ainda de mostrar isso para outras pessoas que é quase como se estivesse me dando um presente. É um ato de confissão, ainda acho. E é incrível como tudo isso elimina a vergonha...
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Lendo e chorando |
O terceiro quadro foi o de ler as confissões, que estavam espalhadas no chão em envelopes. Como eu sempre tenho dúvidas antes de apresentar, tinha a impressão que era tudo muito pueril. Mas, na hora foi difícil dizer. Foi a hora de ganhar intimidade com as pessoas. A cada envolope que eu abria e lia, perguntava para as pessoas "Alguém tem algo a dizer". E eles disseram. Eu continuo com as minhas infindáveis dúvidas disso ou daquilo e olho pra essa ação achando ela meio boba. Mas, eu sei que eu é que estou sendo besta. As pessoas ali me contaram coisas, elas compartilharam algo. É um encontro e era isso que eu queria. Até agora, tem estado na minha cabeça uma das respostas que recebi: "É muito difícil me livrar do estigma de louca"... Todo mundo tem histórias, todas as pessoas têm um mundo próprio e tudo isso é, sim, muito interessante.
Por último, teve "a dança". Esse quadro faz parte da minha tentativa de encontrar algo que esteja entre a dança e o que o meu corpo goste de movimentar. Explicando melhor, estou procurando uma movimentação própria e etc. Tem muita teoria sobre isso por aí, eu é que não as conheço. O que fiz foi dançar as confissões, como se fosse uma outra coisa a contar. Montar essa "coreografia" passou pela escrita do que eu li para o público e também pelo mapeamento das ações/movimentações/trejeitos que me causavam alguma sensação, além daquelas que foram mais recorrentes no processo criativo. Então, é como se o meu corpo, por si só, corpo físico/biológico, tivesse um história que não me é consciente agora e que eu tento conhecer. Da mesma forma que eu, como um todo, tenho uma história esquecida por mim mesma.
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La danse |
Resumindo, posso dizer que os eixos deste trabalho estão no auto-(re)conhecimento e memória, na tentativa de conhecimento/encontro com o outro, na confissão e na descoberta da história do corpo (eu gosto de dizer que danço, mas acho que tem gente que me mataria por isso). Já é o começo de alguma coisa. Sinto que "Retratos: escolha de uma memória de infância" já está madura (sic) o suficiente para mudar de foco e de nome. O que me chama atenção não é mais exatamente a infância em geral nem a minha infância específica, mas a própria visão que nós temos da nossa história, como redescobrí-la e o que eu posso "revelar" para o outro.
*Entrevistas sobre o trabalho
aqui e
aqui.
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Programa da performance
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Trechos do diário do processo
Clique na foto para mais fotos!
Um comentário:
é uma das mais antigas imagens que eu tenho de mim mesmo: morávamos no interior de São Paulo e minha mãe estava grávida do meu irmão mais jovem. Na época eu nem sabia o que aconteceria mas os irmãos da minha mãe foram convocados começou uma correria na vizinhança e nós, os filhos, éramos afastados de toda a cena principal. o que aguçava nossa curiosidade. incrementada pelos gritos que já se ouvia. Meu pai trabalhava como caminhoneiro e neste dia não estava em casa. A IMAGEM que ficou foi todos os três irmãos sendo tirados de casa pelo ainda jovem Tio CARLOS, carregados todos numa bicicleta de aro circular, eu como o mais novo até então, seguia apoiado no guidon, de onde eu tinha uma imagem privilegiada da cena, já que viajava de costas para a direção para onde seguíamos e podia ver o rosto lindo e preocupado do tio Carlos, e ainda os rostos confusos de meus irmãos mais velhos, um no aro da bicicleta, entre eu e o Tio, e o mais velho no banco do carona. Ele era muito amoroso e cuidadoso e ainda preocupado e esforçado na sua função. É o expressão masculina mais poderosa ainda na minha memória.Dias depois eu soube que a cegonha tinha me trazido o meu novo irmão.
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